Duas entrevistas recentes oferecem ao blog Preleção bom material para debate sobre teoria tática aplicada à prática. Ignorem, portanto, os nomes envolvidos, porque o post de hoje não se trata de uma comparação. Confrontar jogadores em momentos tão distintos soaria até injusto. Estão em questão os conceitos envolvidos.
Assim que chegou ao Grêmio, Renato Portaluppi falou que Douglas e Souza não precisam marcar - lembrem aqui. A ideia do treinador gremista é desonerar os meias-articuladores da equipe, concedendo liberdade para que mantenham o posicionamento, sem desgaste, servindo de referência aos demais companheiros na transição ofensiva. A premissa é clara: craques precisam de liberdade para criar.
Mesmo com este privilégio, nenhum deles subiu de rendimento. Douglas e Souza seguem contribuindo pouco quando a equipe tem a posse de bola. E, na transição defensiva, abstêm-se do combate, sobrecarregando os volantes e vulnerabilizando a linha defensiva.
Celso Roth, no Inter, alterou o posicionamento de D’Alessandro. O meia argentino deixou de ser um enganche (articulador central) e desempenha agora a tática individual do meia-extremo (ou externo, como ele mesmo denomina) - leiam nesta entrevista. O treinador colorado retirou D’Alessandro da faixa central, onde ele era refém dos volantes, e levou-o a uma faixa mais incisiva do campo - o lado direito, onde pode trazer a bola para a preferencial canhota, e dali concluir ou armar jogadas. A contrapartida é a obrigação de acompanhar o lateral adversário, uma função muito mais complexa do que bloquear volantes centralizados.
D’Alessandro tem mais atribuições: ocupa uma faixa de campo mais extensa; com a bola precisa se movimentar com maior intensidade; e sem a bola precisa marcar um jogador de maior mobilidade. Vai da linha de fundo adversária à própria área, enquanto antes mantinha-se restrito a uma pequena região centralizada.
Resultado: D’Alessandro melhorou. E levou o Inter consigo. A mudança de posicionamento elaborada por Celso Roth elevou ao mesmo tempo os rendimentos do meia argentino e da equipe. D’Alessandro foi decisivo nos jogos pós-Mundial na conquista da Copa Libertadores 2010, e recebe a justa recompensa da convocação à seleção argentina.
A conclusão - julgando possível aplicar estes dois exemplos ao contexto da teoria tática - é lógica: exigir o cumprimento de funções complexas faz bem para os craques. D’Alessandro admite que não gosta de marcar, e que é muito mais difícil ser winger do que enganche. Mas o próprio desafio de se mostrar capaz do cumprimento da nova tática individual o leva a se estacar. Ele foi retirado da confortável missão de apenas jogar com bola no pé, e cercar volantes que pouco se movimentam - região e função defendidas por Renato Portaluppi nos casos de Souza e Douglas.
Jogadores de exceção não deixam de ser jogadores. Contar com eles também não significa ignorar a essência coletiva do futebol. Craques são capazes de desempenhar funções complexas, com a bola ou sem ela. São capazes, e devem cumprir. O conceito liberal “a concorrência leva à excelência”, no futebol, pode ser adaptado facilmente para “a exigência leva à excelência”. Não há mais espaço para exclusivos solistas. Cada um precisa carregar o próprio piano para tocá-lo.
Eduardo Cecconi
Redator de Esportes - clicRBS
http://twitter.com/eduardocecconi
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